Os resultados da vacina covid-19 da Oxford / AstraZeneca resistem a uma validação?

A AstraZeneca está desenvolvendo uma vacina contra o coronavírus em parceria com a Universidade de Oxford

Imagens DAN HIMBRECHTS / AAP / PA


No início desta semana, a gigante farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford divulgaram resultados positivos sobre sua vacina covid-19, alegando que ela era em média 70% eficaz e poderia atingir 90% de eficácia dependendo da dosagem. Mas agora, várias questões foram levantadas sobre as descobertas. O que está acontecendo?

De que forma os resultados não são boas notícias?

Enquanto cientistas, jornalistas e analistas de negócios refletiam sobre os números, eles notaram alguns problemas potenciais com a forma como o teste foi conduzido, o que lançou algumas dúvidas sobre os resultados divulgados e pode ser um obstáculo para a aprovação da vacina.

Que tipo de problemas potenciais?

Em uma palavra, metodológico. “Há muitos problemas”, disse Paul Hunter, professor de medicina e especialista em metodologia de ensaios clínicos na Universidade de East Anglia, no Reino Unido, à New Scientist.

Tal como?

Em vez de resultados de um grande ensaio clínico de fase 3, que é o que vimos em ensaios de outras vacinas covid-19, esses resultados foram, na verdade, dados agrupados de dois ensaios separados, um no Reino Unido e outro no Brasil. E houve um erro gritante na maneira como uma das duas experiências foi conduzida. Devido a um erro de laboratório, alguns dos participantes do estudo baseado no Reino Unido receberam cerca de metade da dose pretendida de sua primeira injeção (a vacina requer duas injeções com pelo menos um mês de intervalo).

Um erro parece ruim, não é?

O erro violou o protocolo que estabelecia como o ensaio deveria ser conduzido, mas o ensaio continuou e os dados desses voluntários foram incluídos na análise. De acordo com uma reportagem do New York Times, os desenvolvedores da vacina notaram o erro – que foi resultado do trabalho de uma empresa terceirizada – enquanto o teste estava em andamento, mas consultaram os reguladores e receberam autorização para prosseguir .

Mas o erro gerou um feliz acidente, não foi?

Sim. Os voluntários que receberam a primeira dose errônea de meia dose acabaram tendo um nível de proteção mais alto contra o covid-19 do que aqueles que não receberam. A vacina de “dose completa” foi 62 por cento eficaz, mas a meia dose foi 90 por cento. Essa é a fonte da média de 70% e a noção de que a vacina pode ser ajustada para atingir 90%.

Existe um “mas”?

Há sim. Como o erro de dosagem violou o protocolo do ensaio, há razões para duvidar dos números gerais. Os detalhes são matematicamente difíceis, mas resumem-se ao fato de que um número muito menor de pessoas recebeu a meia dose do que a dose completa, o que corre o risco de tornar os tamanhos das amostras muito pequenos e “prejudicar” o ensaio.

Como Hunter explica, o erro significa que os estatísticos tiveram que confiar na “análise de subgrupo”, o que pode tornar o ensaio muito pequeno para tirar conclusões firmes. A análise de subgrupo – especialmente quando introduzida post-hoc em vez de como parte do protocolo do estudo original – é conhecida por aumentar o risco de encontrar falsos positivos, diz ele. Mas ele ressalta que não há nada de suspeito na metodologia.

Oxford e AstraZeneca afirmam que todos os resultados são estatisticamente significativos, mas ainda não divulgaram os números completos.

Isso é tudo?

Não. Outro problema é o fato de que os resultados vieram de dados agrupados de testes separados, porque eles foram realizados em protocolos diferentes. O do Reino Unido foi um ensaio combinado de fase 2/3, enquanto o do Brasil foi uma fase 3 pura. Eles também usaram placebos diferentes.

Essas variações no protocolo não são necessariamente um problema, mas podem ser. Os dados devem ser tratados com cuidado para levar as diferenças em consideração, diz Hunter. Existem métodos estatísticos estabelecidos para lidar com isso. “Não estou tão preocupado com isso quanto com a análise inesperada de subgrupo”, diz ele. Mas, novamente, os detalhes da metodologia não foram publicados.

O erro de dosagem amplia esse problema potencial. Isso só aconteceu no Reino Unido e apenas com alguns dos voluntários, o que amplia ainda mais as discrepâncias metodológicas entre os dois ensaios.

Os resultados completos foram publicados em uma revista revisada por pares?

Não. Os resultados do estudo no Reino Unido foram publicados no The Lancet, mas os resultados completos e combinados só foram revelados em um comunicado à imprensa que não incluiu números detalhados. A Universidade de Oxford disse que os resultados completos seriam submetidos a um jornal. Na quinta-feira, a AstraZeneca anunciou planos para um novo teste global.

É incomum os resultados do comunicado de imprensa dessa forma?

Não para esses tipos de testes, diz Mark Toshner, médico de testes clínicos da Universidade de Cambridge. Ele está realizando uma das partes do estudo no Reino Unido, mas não trabalha ou recebe financiamento da AstraZeneca ou da Universidade de Oxford e não tem interesse em saber se a vacina funciona ou não.

A sugestão de que os dados foram retidos – que foram nivelados em vários testes da vacina covid-19 – é injusta, diz ele. Na verdade, a abordagem que vimos é uma exigência legal destinada a evitar o comércio de informações privilegiadas. “No minuto em que você tem uma análise provisória e um resultado positivo, para evitar a má-fé, você tem que obter esse resultado positivo”, diz Toshner – portanto, comunicados à imprensa em vez de dados e análises detalhados, o que leva tempo.

“É obrigação da comunidade científica examinar os dados, mas adivinhar os dados antes de vê-los não inspira confiança e prejudica o processo científico”, diz ele.

Existem outras preocupações?

Houve relatos, agora confirmados pela AstraZeneca, de que as pessoas no subgrupo da meia dose eram mais jovens em média do que os participantes como um todo, o que sugere que o número de 90 por cento pode ser muito alto. As vacinas geralmente funcionam melhor em pessoas mais jovens, diz Hunter.

Nem a AstraZeneca nem a Oxford divulgaram detalhes completos dos perfis de idade dos voluntários em ambos os ensaios, exceto para dizer que todos tinham 18 anos ou mais.

Outra questão é que os voluntários eram todos saudáveis ou tinham “condições médicas subjacentes estáveis”. Isso pode significar que os resultados não refletem o desempenho da vacina entre grupos vulneráveis, como pessoas com graves problemas de saúde.

Portanto, devemos desconsiderar este ensaio de vacina?

“Absolutamente não”, diz Hunter. Mesmo que a vacina seja realmente apenas 62 por cento eficaz, isso é mais alto do que o limite de 50 por cento considerado aceitável pela Organização Mundial da Saúde e pela Food and Drug Administration dos EUA. Se esse resultado tivesse sido divulgado três semanas antes, estaríamos nas nuvens, diz Hunter. Acontece que fomos estragados por boas notícias de outros lugares, com vários outros testes de vacinas relatando números de eficácia de 90 por cento ou mais.


Publicado em 30/11/2020 22h24

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