Uma fraude, antiético ou apenas um erro na dosagem? O estudo com cloroquina de Manaus

Foto: Pixabay

Em vez de testar segurança e eficácia, estudo apenas procurou a “dose letal”

Diz a matéria da Folha de São Paulo:

Cientistas com condecorações da Ordem Nacional do Mérito Científico fizeram uma renúncia coletiva da medalha concedida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

O gesto foi motivado pela exclusão de dois cientistas da lista de agraciados que haviam sido alvos de apoiadores do governo federal.

Mais de 20 cientistas assinaram a carta em apoio a Marcus Vinícius Guimarães Lacerda, pesquisador da Fiocruz, e Adele Schwartz Benzaken, diretora da Fiocruz Amazônia.

Nesta sexta-feira (5), em decreto publicado em edição extra do Diário Oficial da União, Bolsonaro anulou a admissão dos pesquisadores na classe de “comendador” por conhecimentos sobre ciências da saúde.


Mas vamos conhecer um pouco do histórico do estudo de cloroquina em Manaus

Conforme descrito no site Poder360:

Fossem as circunstâncias diferentes, a morte do indígena Ozaniel Almeida Rosa não teria passado em branco. Ozaniel foi o segundo índio brasileiro a morrer com covid, e uma das primeiras vítimas fatais da doença em todo o Estado do Amazonas.

Morte de índio é prato cheio para os propagandistas de plantão, e uma oportunidade dessas não teria sido desprezada pelas carpideiras bem pagas da imprensa nacional. Mas Ozaniel foi sem choro. Para seu azar, ele morreu exatamente nas mãos de quem contrata as carpideiras, e foi privado do privilégio póstumo de ter sua dor comodificada.

Incapaz de se decompor como mais um cadáver no colo do grande culpado pela pandemia mundial, Jair Bolsonavírus, Ozaniel não virou capa de revista. Em vez disso, ele foi enterrado na vala comum dos crimes sem culpado.Mas junto com ele foi enterrado também um dos casos mais vergonhosos na história da ciência: o estudo da cloroquina em Manaus.

Agora, graças ao jornalista David Ágape e sua reportagem no jornal Gazeta do Povo, é possível conhecer alguns detalhes do horror que esteve virtualmente ausente dos jornais por mais de 1 ano.

Ozaniel tinha feito 2 testes para a covid, segundo sua família, e ambos deram negativo. Ele foi ao hospital porque estava com tosse, como me explicou Ágape, mas segundo seus familiares ele se sentia bem e estava saudável no alto de seus 55 anos. Só que uma tomografia teria identificado uma tuberculose, e a equipe médica recomendou que ele ficasse no hospital. Ozaniel não sairia de lá vivo.

“Ele havia esquecido o celular em casa e me pediu para buscá-lo. Disse que iria ficar me aguardando na recepção. A gente se abraçou na despedida”, conta a sua mulher, Norma Maria Cunha, servidora pública. “Na volta, Norma descobriu que não poderia mais ver nem falar com ele, pois não era permitida a entrada de celular. O contato com o marido foi ficando cada vez mais difícil depois que ele foi para a chamada ‘Sala Rosa’. Essa sala era onde ficavam em observação os pacientes infectados com Covid.

Para a esposa, foi ali que Almeida Rosa contraiu o vírus. Nesse momento ela conta que lhe informaram que ele havia sido escolhido para participar de um estudo sobre cloroquina, mas conta que em nenhum momento pediram a autorização da sua família”.

Foi só depois da morte que a família de Ozaniel recebeu um pedido de autorização para que ele participasse do experimento que iria resultar na morte de outros 21 supostos voluntários.

Outra das vítimas fatais foi o músico amazonense Robson de Souza Lopes, conhecido como Binho, de 43 anos. Segundo sua cunhada Lucia Noronha de Azevedo, que acompanhou toda a internação, “desde o primeiro dia ele ficou intubado. Lucia afirma que Binho não tinha comorbidades, era saudável e que em nenhum dia passou mal. Ela explica que Binho tomou a dose mais alta de cloroquina e que, para ela, foi isso que o levou ao óbito. ‘Dia 27 falei com ele no leito, ele estava intubado. Porém, pedi para ele mexer a cabeça se estivesse ouvindo, e ele mexeu. Aí não acreditei. Pedi para mexer os pés, ele mexeu os dois. Eu orei e cantei com ele e ele começou a chorar,’ lamenta. Três dias depois, a família recebeu a notícia de que ele estava reagindo bem aos medicamentos e que seria o primeiro a receber alta. Mas, no final do mesmo dia, 30 de março, veio a notícia de que ele havia falecido, deixando a família em choque.’

O estudo de Manaus, conhecido como Clorocovid e publicado na prestigiada revista médica JAMA (Journal of the American Medical Association), foi conduzido no hospital que leva o nome de Delphina Aziz, mãe do senador Omar Aziz, presidente da CPI da Covid. O estudo contou com a participação de “70 pesquisadores de diversas instituições e universidades, como a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, a Universidade do Estado do Amazonas e a Universidade de São Paulo”, e foi liderado pelo médico e pesquisador Marcus Vinícius Guimarães Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, e especialista em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Amazonas (Fiocruz/AM).

Segundo a própria Fiocruz, a pesquisa foi “financiada pelo Governo do Estado do Amazonas, Superintendência da Zona Franca de Manaus, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, e fundos federais facilitados pelo Senado brasileiro”.

Uma das cientistas que co-assina o estudo é Ludhmila Hajjar, brevemente cotada para assumir o Ministério da Saúde em um dos intervalos do rodízio na pasta.

O estudo tinha 2 objetivos declarados: testar a eficácia e a segurança da cloroquina no tratamento da Covid. Mas fica difícil entender que houve intenção de testar a eficácia quando se sabe que o estudo não contou com um grupo de placebo. Sem o placebo, ou seja, sem um grupo que não tenha tomado a cloroquina, como seria possível comparar o efeito dela com o efeito da ausência dela? Já a intenção de provar que a cloroquina não é segura ficou clara desde o começo, e o próprio Marcus Lacerda deixou isso explícito. Em entrevista à Gazeta do Povo, ele diz que era “preciso mostrar que isso [a dose] seria inseguro para a Covid”.

E de fato foi.Nunca antes tal dose foi usada em um estudo, nem recomendada por qualquer jornal científico. Para ignorantes como eu, seria como fazer um experimento tentando provar que o sal mata. Vai ter uma hora que vai ser encontrada a “dose certa.” Segundo os familiares entrevistados por David Agape, eles foram induzidos a assinar permissão para a dose mais baixa, mas seus parentes foram tratados com a dose mais alta.

Para Francisco Cardoso, médico infectologista que recentemente prestou esclarecimentos sobre o tratamento precoce na CPI da Covid, houve uma confusão entre as formulações da cloroquina no estudo de Manaus, e no estudo chinês citado por Lacerda como referência. “No estudo de Manaus eles deram 1.200 de mg de cloroquina base, calculado em fosfato “dá cerca de 2.000 mg por dia para os pacientes. A própria bula da cloroquina fala que deve-se evitar dar mais de 1.500 mg em 3 dias seguidos. Eles [o estudo de Manaus] deram para esses pacientes 3.600 mg de cloroquina em 3 dias”.

Como diz o poster com anúncio de uma cartomante em Ipanema (“Tenha êxito em seus problemas!”), o problema de Lacerda teve êxito, porque, se ele queria encontrar uma dose letal da cloroquina, não há dúvida: ele conseguiu.


A reportagem de Julho de 2021, publicada na Gazeta do Povo:

Cloroquina em Manaus: parentes de 2 pacientes que morreram denunciam superdosagem

Familiares de dois pacientes que morreram após passar por um estudo para testar a eficácia da cloroquina – realizado em Manaus (AM) com a participação de mais de 70 pesquisadores de diversas instituições e universidades – denunciam a equipe por suposta tentativa de fraude nos resultados do estudo. Segundo eles, os pesquisadores teriam tentado fazer parecer que pacientes tomaram uma dose baixa do remédio, quando, na verdade, teriam tomado uma dose maior, o que os teria levado à morte. A denúncia é reforçada por depoimentos de médicos que acusam a equipe de aplicar uma superdosagem fatal de cloroquina nos pacientes.

Ambas foram enviadas ao Grupo de Atuação Especial de Investigação do Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM), que está realizando um Procedimento Investigatório Criminal para investigar o estudo.

Durante o ano que se seguiu, os nomes dos 22 pacientes que morreram durante o estudo e seus familiares ficaram em anonimato, por questões éticas e legais relacionadas a esse tipo de pesquisa, que deve ser sigilosa. E foi o que Conep, Ministério da Saúde e MP de Bento Gonçalves alegaram quando a Gazeta do Povo solicitou as informações.

Entretanto, por meio de um cruzamento de dados de mortes de pessoas infectadas com Covid-19 com a data e o local em que estudo foi realizado, a reportagem conseguiu encontrar e falar com familiares de duas pessoas que participaram do experimento e morreram. Eles acreditam que a superdosagem foi responsável pela morte de seus familiares e denunciam uma possível tentativa de fraude dos pesquisadores.

O músico amazonense Robson de Souza Lopes, de 43 anos, conhecido como Binho, foi internado no dia 20 de março de 2020 e ficou 10 dias no Hospital Delphina Aziz, local onde estava sendo realizado o estudo Clorocovid. Binho foi o segundo a morrer no estado do Amazonas em decorrência de infecção por Covid-19.

A esposa de Binho preferiu não se pronunciar porque ainda se encontra muito abalada pela morte do marido, mas Lucia Noronha Azevedo, de 47 anos, cunhada de Binho, e que acompanhou toda a internação, conta que desde o primeiro dia ele ficou intubado. Lucia afirma que Binho não tinha comorbidades, era saudável e que em nenhum dia passou mal. Ela explica que Binho tomou a dose mais alta de cloroquina e que, para ela, foi isso que o levou ao óbito.

“Dia 27 falei com ele no leito, ele estava intubado. Porém, pedi para ele mexer a cabeça se estivesse ouvindo, e ele mexeu. Aí não acreditei. Pedi para mexer os pés, ele mexeu os dois. Eu orei e cantei com ele e ele começou a chorar”, lamenta.

Três dias depois, a família recebeu a notícia de que ele estava reagindo bem aos medicamentos e que seria o primeiro a receber alta. Mas, no final do mesmo dia, 30 de março, veio a notícia de que ele havia falecido, deixando a família em choque.

Lucia conta que, no dia da internação de Binho, a esposa dele assinou um documento com autorização para participar do estudo, mas depois do falecimento solicitaram que outra autorização fosse assinada. “Eles foram na minha irmã para ela assinar outro protocolo, dizendo que ele tinha recebido a dose menor. Ela não assinou”, salienta.

Entretanto, a ficha médica de Binho fornecida pela família à reportagem mostra claramente que ele foi participante do grupo que foi medicado com a dose maior de cloroquina.

Outro a morrer após participar do estudo foi o agricultor Ozaniel Almeida Rosa, de 55 anos, morador de Manaus, mesmo tendo dois resultados negativos em testes para Covid-19, segundo a família. Primeiro indígena a morrer devido à Covid-19 no Amazonas – segundo do Brasil -, Almeida Rosa foi internado em 23 de março e morreu no dia 5 de abril. A família acusa o estudo de negligência e de ter apenas recebido pedido autorização para que ele participasse dias após a morte.

A esposa de Almeida Rosa, a servidora pública Norma Maria Cunha, de 57 anos, contou que ele estava bem quando chegou no hospital e que era saudável. Mas, quando ele deu entrada na unidade hospitalar, após ser realizada uma tomografia que acusou uma tuberculose, a equipe médica solicitou que ele ficasse em observação. Isso espantou Norma pois, para ela, Almeida Rosa poderia realizar o tratamento em casa. No entanto, os médicos insistiram para que ele ficasse um pouco mais para maior avaliação. Almeida Rosa e sua esposa não sabiam, mas ele nunca mais voltaria para casa.

Emocionada, Norma fala da última vez que conseguiu falar com o esposo. “Ele havia esquecido o celular em casa e me pediu para buscá-lo. Disse que iria ficar me aguardando na recepção. A gente se abraçou na despedida”.

Na volta, Norma descobriu que não poderia mais ver nem falar com ele, pois não era permitida a entrada de celular. O contato com o marido foi ficando cada vez mais difícil depois que ele foi para a chamada “Sala Rosa”. Essa sala era onde ficavam em observação os pacientes infectados com Covid. Para a esposa, foi ali que Almeida Rosa contraiu o vírus. Nesse momento ela conta que lhe informaram que ele havia sido escolhido para participar de um estudo sobre cloroquina, mas conta que em nenhum momento pediram a autorização da sua família.

Norma, que é profissional da área de saúde, conta que ficou desconfiada do procedimento que foi realizado, pois não lhe davam notícias sobre o estado do marido e chegaram a tratá-la mal durante a sua busca por informações.

No terceiro dia, Norma, sentindo um mal-estar, foi realizar exames no hospital, pois ela suspeita que poderia também estar com tuberculose por causa do contato que teve com Almeida Rosa. Desse modo, conseguiu ver de relance o marido, mas, quando tentou se aproximar, os seguranças não a deixaram entrar.

Após algumas horas, ela diz que recebeu a notícia de que ele havia sido transferido para a UTI e estava intubado. A justificativa dada pelo médico era que Almeida Rosa passou mal e não reagiu bem à medicação. Norma ficou indignada, pois tinha conversado com ele no dia anterior e o visto horas antes na observação. O marido passou 13 dias intubado. A esposa afirma que durante esse tempo os médicos tentaram retirar o tubo de respiração para fazer uma ‘experiência’, mas tiveram que recolocá-lo em seguida.

“Eu trabalho na área de saúde e sei que uma pessoa intubada duas vezes não pode resistir. Porque você vai ferir a garganta da pessoa”, Norma se dirigiu indignada para o médico. Nesse momento ela conta que entrou em desespero.

Na sequência, Norma adoeceu e teve que ficar isolada em casa. Nesse período, recebeu a notícia de que o marido havia falecido por meio do filho, Maycon Jhonny Cunha Carvalho, de 38 anos, que acompanhou de perto a internação de Almeida Rosa enquanto sua mãe estava internada.

Carvalho também conta que, dias depois da morte de Almeida Rosa, uma equipe de enfermeiros foi até a casa de sua mãe para pedir autorização para que ele participasse do estudo. Ele explica que se recusaram a assinar, pois não tinham autorizado nem sido consultados.

Para Carvalho, Almeida Rosa não estava infectado com Covid quando chegou ao hospital, mas com tuberculose, e que isso, aliada à superdosagem de cloroquina, foi o que levou o pai a óbito. Carvalho conta que até hoje não conseguiu ter acesso à ficha médica e que planeja uma ação judicial. “Ele não estava com essa porcaria aí. Fizeram aplicação de remédio sem necessidade, de uma doença que ele não estava sofrendo, era de outra”, disse.

Segundo Amanda Costa, advogada especialista em Direito Médico e Direito Penal, os pacientes que participam de pesquisa devem fornecer termo de consentimento após receberem claras informações sobre os riscos físicos, psicológicos e sociais que podem ocorrer ao aceitarem participar do experimento, que deve estar cercado de garantias éticas e científicas.

Porém, uma pesquisa realizada em desconformidade ética pode levar os responsáveis a responder no tribunal de ética, civilmente e até criminalmente.

“O tribunal de ética atua através de uma denúncia, que não pode ser anônima, onde é instaurada uma sindicância para investigar se os atos do médico foram contra a ética e princípios médicos. Na justiça comum, podem responder por homicídio na forma culposa por imprudência, por exemplo, com 1 a 3 anos de detenção, conforme o artigo 121 do código penal”, disse.

De esperança a contestações

No início de 2020, a cloroquina se tornou a grande promessa no combate à Covid-19, após estudos preliminares como o publicado pelo médico francês Didier Raoult e a indicação do presidente americano Donald Trump da suposta eficácia. No Brasil, o medicamento foi recebido com grande entusiasmo por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.

Porém, essa esperança não foi confirmada. O medicamento, que já é conhecido há quase um século e utilizado com sucesso para o tratamento de malária e lúpus, teve sua eficácia questionada e, até agora, não há estudos definitivos sobre o tema, apenas pesquisas que mostram benefícios do uso de um coquetel de medicamentos nas primeiras fases da doença. Um dos primeiros estudos a tentar comprovar algo sobre o uso da cloroquina contra a Covid-19 foi o chamado Clorocovid, realizado em Manaus, em abril de 2020.

Composto por uma equipe multidisciplinar de mais de 70 pesquisadores de diversas instituições e universidades, como a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, a Universidade do Estado do Amazonas e a Universidade de São Paulo, o estudo tinha o objetivo de testar a eficácia de diferentes dosagens de cloroquina no tratamento do Covid-19.

A razão para ser realizado na capital amazonense foi a sua longa experiência com cloroquina no combate à malária, cujo tratamento é feito com esse remédio.

A proposta do estudo foi enviada no dia 20 de março de 2020 à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e aprovada em tempo célere: em apenas três dias a equipe analisou e aprovou a realização – no mesmo dia da aprovação foi iniciada a distribuição dos remédios para os pacientes. O estudo contou com a participação de 81 pacientes internados em estado grave no Hospital Delphina Aziz, de Manaus, hospital referência para atender os casos do Covid-19 na cidade.

Os pacientes foram divididos em dois grupos. No primeiro, 41 pessoas receberam uma dose alta do remédio (600 mg 2x/dia durante 10 dias), muito acima do limite indicado na bula (máximo de 1.500 mg em 3 dias) e no segundo, 40 receberam uma dose menor, mas também excedente ao indicado (450 mg, duas vezes ao dia, no primeiro dia e 450 mg dose única por mais 4 dias, totalizando 5 dias de tratamento).

A intenção era comparar a reação à dose alta de cloroquina, utilizando como controle a dose baixa com a justificativa de que seria antiético não fornecer a medicação para um grupo de controle. Na ocasião, o Ministério da Saúde, junto à Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCETIE), recomendou a dose baixa para o tratamento de pacientes com quadro clínico grave.

Para participar do estudo, os pacientes ou seus familiares deveriam assinar termos de autorização livre e esclarecida, por meio dos quais permitiriam que os pesquisadores dessem a medicação e coletassem dados para a pesquisa após explicação clara sobre os riscos do estudo.

O início das mortes em estudo com cloroquina

Pacientes começaram a morrer após o início da aplicação do medicamento. Assim, a equipe decidiu suspender a aplicação da dosagem alta, segundo eles, no 13º dia, aplicando a todos os participantes do estudo apenas a dose mais baixa. No total, morreram 16 pessoas que receberam a dose alta e 6 que receberam a dose menor.

O médico e pesquisador Marcus Vinícius Guimarães Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, e especialista em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Amazonas (Fiocruz – AM), que liderou o estudo, foi acusado, sem provas, nas redes sociais de ter matado intencionalmente com doses altas de cloroquina.

Inquéritos foram abertos pelo Ministério Público (MP) de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, e pelo Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas, para apurar se houve negligência ou superdosagem medicamentosa que teriam causado as mortes dos pacientes. Além disso, o estudo foi alvo de procedimento do Conep.

Porém, mesmo com investigações em andamento, diversas instituições passaram a fazer uma campanha de defesa do estudo e do líder do grupo, Lacerda. Os inquéritos e investigações foram arquivados após apurações que seguiram em sigilo.

Em entrevista concedida à Gazeta do Povo em 16/04/2020, Lacerda disse que a equipe seguiu a dosagem do “consenso chinês”, que também fez testes com o medicamento, e que se alguém deveria ser chamado de criminoso seriam os chineses, pois foram eles que começaram a utilizar essa dose. Há pesquisas da década de 1980 que confirmam que ultrapassar as medidas previstas de cloroquina na bula resulta em intoxicação grave, mas o médico disse que era necessário testar se o mesmo ocorria em caso de pacientes com Covid-19.

Médicos questionam o estudo com cloroquina na CPI do Covid

Mais de um ano após o fim do estudo, Lacerda tem novamente os holofotes voltados para si por causa da CPI do Covid, criada para apurar irregularidades na condução da pandemia no Brasil. Em 17 de maio, o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) enviou solicitação à Polícia Federal propondo investigação sobre uma suposta superdosagem do estudo Clorocovid.

Cerca de um mês depois, os médicos infectologistas Francisco Cardoso e Ricardo Zimmermann foram convidados por Heinze a dar esclarecimentos na CPI da Covid sobre os medicamentos do chamado “tratamento precoce”. Cardoso disse que a questão fundamental para as mortes no estudo foi uma superdosagem causada por uma confusão entre as formulações do medicamento utilizado no estudo chinês, citado pelo médico Marcus Lacerda como sua principal referência, e o brasileiro, fabricado pelo Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz (Farmanguinhos).

Cardoso explicou que a equipe de pesquisadores do Clorocovid errou na hora de replicar o estudo chinês, cuja cloroquina possui comprimidos de 500 mg de fosfato de cloroquina, equivalente a cerca de 300 mg de cloroquina pura; enquanto o comprimido brasileiro possui 241 mg de difosfato de cloroquina, mesma coisa de fosfato, e equivalente a 150 mg de cloroquina pura. Porém, a equipe teria se confundido ao ler a bula do remédio brasileiro, que seria cloroquina pura e não fosfato, dando na prática, o dobro da dose do estudo chinês.

“No estudo de Manaus eles deram 1200 de mg de cloroquina base, calculado em fosfato, dá cerca de 2.000 mg por dia para os pacientes. A própria bula da cloroquina fala que deve-se evitar dar mais de 1500 mg em três dias seguidos. Eles deram para esses pacientes 3.600 mg de cloroquina em três dias. Sete pacientes morreram nestes 3 dias”, disse, alertando para não se deve confundir cloroquina com a hidroxicloroquina, que possui dosagem diferente e margem de segurança melhor.

Cardoso afirmou que, como o estudo era randomizado, ambos os grupos tinham o mesmo grau de risco e, em tese, deveriam ter a mesma taxa de mortalidade. Porém, o grupo que recebeu a dosagem maior de cloroquina teve quase 3 vezes mais mortes do que o grupo que tomou a dose menor. Para ele, o estudo foi uma tragédia e “uma vergonha para a ciência nacional”.

Agora, o MP do estado do Amazonas está conduzindo um procedimento investigativo para definir as responsabilidades das mortes durante o estudo CloroCovid. Entretanto, segundo nota enviada pelo MP à Gazeta do Povo, a investigação corre sob sigilo legal.

A reportagem conversou com o médico amazonense Mário Vianna, presidente do Sindicato dos Médicos do Amazonas (Simeam), convidado pelo MP-AM a explicar o pedido de providências feito por ele, em maio de 2020, ao Conselho Regional de Medicina do Amazonas para apurar as responsabilidades sobre a pesquisa, que para ele era “obscura”.

“O motivo da minha denúncia foi o absurdo de se utilizar doses tão elevadas para o tratamento dos pacientes selecionados. E também o critério de seleção dos pacientes, que só respeitou a idade ser acima de 18 anos. Não foram retiradas pessoas com sabida cardiopatia e até mesmo, segundo informações, gestantes”, disse.

Além disso, uma peça-chave surge para responder algumas perguntas: os relatos de familiares das vítimas, que acusam os pesquisadores de fraudar o estudo.

O que dizem os envolvidos no estudo com a cloroquina

A assessoria de Marcus Lacerda informou que o médico não irá se manifestar. “O inquérito em questão encontra-se judicializado e todos os esclarecimentos estão sendo feitos ao órgão competente”, informou.

Em nota, a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) disse que foi uma das instituições colaboradoras do estudo Clorocovid-19, por meio de docentes e discentes do Programa de Pós-graduação em Medicina Tropical (PPGMT). E que o protocolo de pesquisa teve a anuência da universidade, seguiu as normas éticas vigentes no Brasil e recebeu a devida aprovação do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

“A UEA ressalta ainda que os procedimentos de apuração sobre o estudo foram conduzidos por meio do Conep, Ministério Público Federal (MPF) e Conselho Federal de Medicina (CFM), foram arquivados por ausência de materialidade”, afirmou.

O coordenador do Conep, Jorge Alves de Almeida Venâncio, disse que a equipe do Conselho de Ética apurou minuciosamente as mortes dos pacientes, e que tanto o Comitê Independente de Monitoramento de Segurança e Dados, que acompanhava remotamente a pesquisa e era composto por cinco professores de universidades diferentes “que após a morte dos pacientes pediu a paralisação da dose maior e pediu o encerramento do estudo”, quanto o Conep não constataram relação dos óbitos com a medicação.

Entretanto, ele conta que houve apenas uma notificação enviada à Anvisa de um problema de boas práticas em pesquisa; um descontrole, segundo ele, na quantidade de medicação ministrada aos pacientes. Venâncio, porém, afirma que sua equipe não constatou que esse problema poderia causar riscos aos pacientes, e que apenas poderia atrapalhar nos resultados da pesquisa.

“Em processo de pesquisa clínica você tem que ter: a prescrição, a dispensação da farmácia e o relato da enfermagem com a dose que foi dada efetivamente. Em alguns casos houve lacunas na medicação que estava prevista. Teve casos em que a dose foi menor do que estava prevista originalmente. Dose a mais não houve nenhum caso. Esse fato nós reportamos à Anvisa, para que ela apurasse, porque é um caso de boas práticas clínicas e quem cuida disso é a Anvisa”, disse, acrescentando que, em caso de irregularidades, deveria ser enviada representação ao MP, que tem o poder de fazer investigação criminal.

Venâncio também disse que a questão da diferença da medicação brasileira e chinesa, informada pelo médico Francisco Cardoso na CPI, não foi considerada pelo Conep em suas análises e que ouviu a primeira vez sobre a questão ao falar com a reportagem. Entretanto, ele nos disse que a afirmação de Cardoso não procede, pois os medicamentos fosfato de cloroquina e difosfato de cloroquina são a mesma coisa.

Sobre essa questão, Francisco Cardoso reforçou o que havia dito e informou que de fato os dois medicamentos são a mesma coisa, mas a diferença é que a apresentação do comprimido na China é 500 mg de fosfato, que equivale a 300 mg de cloroquina base. No Brasil, o comprimido tem 241 mg de fosfato de cloroquina, ou difosfato, o que equivale a 150 mg de base.

“Aqui no Brasil o que é anunciado na capa do comprimido são os 150 mg de cloroquina pura, que seria a base, e não os 241 mg de fosfato de cloroquina. A base é a molécula da cloroquina propriamente dita e o sal é essa molécula trabalhada, como ela se apresenta em sua fórmula química”.

“É como se fosse uma laranja pesando 200 gramas, mas que tem 100 ml de suco. O suco é o que importa, o resto é o bagaço. Exemplificando de forma primária para que se entenda a diferença”, disse.

Para ele, o Conep sempre soube desta questão e agora está tentando “passar pano”. Além disso, ele disse que o médico Marcus Lacerda não pode alegar desconhecimento, porque a equivalência se encontra escrita no seu artigo. Para Cardoso, esse caso prova que há grave falha no sistema de controle e gerenciamento ético de pesquisa no Brasil.

O Grupo de Atuação Especial de Investigação do Ministério Público do Estado do Amazonas (Gaeco/MPAM) enviou nota informando que há um procedimento investigativo para apurar as circunstâncias de Eventos Adversos Graves (EAG) ocorridos durante pesquisa de eficácia e segurança do uso da Cloroquina em pacientes com Covid-19, realizado no Hospital Delphina Aziz, na Cidade de Manaus em março de 2020.

“A investigação corre sob sigilo legal, em decorrência de informações que pela sua própria natureza tem previsão legal de proteção de dados, cabendo ao órgão de investigação respeitar por dever funcional. Em razão do sigilo, não é possível informar o conteúdo de diligências em andamento ou a serem realizadas, nos moldes de entendimento consagrado na jurisprudência nacional, inclusive sumulada no Supremo Tribunal Federal”, disse o MP.

Já a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas informou que “o Ensaio Clínico Clorocovid-19, realizado com Difosfato de Cloroquina no Hospital de Referência à Covid-19 Delphina Aziz, seguiu todos os padrões éticos e científicos, tendo obtido aprovação e autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)”.

De acordo com a secretaria, “o estudo contou com a participação de cerca de 70 profissionais, entre médicos, enfermeiros, farmacêuticos e alunos de pós-graduação, de instituições renomadas em pesquisa, a exemplo da Fiocruz Amazônia, da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), e do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), entre outros, além de profissionais do próprio hospital onde o estudo foi realizado”.

A pasta destacou ainda que “seus resultados foram amplamente divulgados em revistas científicas de reconhecimento internacional e todas as informações foram prestadas aos órgãos de controle, como o Ministério Público Federal (MPF) e ao órgão de classe, o Conselho Federal de Medicina (CFM)”.

Com relação à Fiocruz, a reportagem solicitou que a instituição respondesse algumas questões relativas ao estudo. A instituição limitou-se a enviar uma nota. Ela, porém, apresenta imprecisões. No total, 22 pessoas que participaram do estudo morreram e não 11, conforme menciona a instituição. Além disso, ainda há inquérito em andamento no MP- AM. Leia a nota da Fiocruz:

“Todos os esclarecimentos relacionados a este estudo já foram prestados à época de sua realização. Trata-se de uma pesquisa financiada pelo Governo do Estado do Amazonas, Superintendência da Zona Franca de Manaus, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, e fundos federais facilitados pelo Senado brasileiro.

O processo de investigação científica seguiu todos os requisitos de Boas Práticas em Pesquisa Clínica, tendo obtido a aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), órgão máximo que autoriza a pesquisa em seres humanos no Brasil, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde. O estudo seguiu rígidos protocolos de segurança e foi validado cientificamente por pesquisadores externos, tendo seus resultados publicados em uma das mais prestigiadas revistas científicas internacionais, o Journal of American Medical Association.

No que se refere ao óbito de 11 pacientes durante o estudo, sete deles faziam uso de dosagem mais alta e quatro da dosagem baixa. O óbito de todos esses pacientes ocorreu em razão de complicações associadas à Covid-19 e não estiveram relacionados às dosagens administradas na pesquisa, conforme comprovado pelos respectivos atestados de óbito. Fizeram parte do estudo apenas pacientes internados em estado grave. Destaca-se ainda que o Ministério Público Federal e o Conselho Regional de Medicina do Amazonas abriram processos, à época, com o objetivo de apurar o caso e concluíram pelo seu arquivamento, uma vez que não foram identificadas quaisquer irregularidades no estudo.”

Já a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD) informou, também por meio de nota, que “é uma das instituições executoras do projeto Clorocovid-19, com seu corpo de pesquisadores, alunos e colaboradores. Todo estudo realizado pela Fundação de Medicina Tropical Dr Heitor Vieira Dourado, antes do seu início, é aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, uma instância colegiada, deliberativa e permanente do Sistema Único de Saúde (SUS), integrante da estrutura organizacional do Ministério da Saúde. O Clorocovid1-9 não foi diferente, sua aprovação foi publicada na Edição Especial do Boletim Ética em Pesquisa do dia 23/03/2020.

O protocolo de pesquisa teve a anuência da FMT-HVD, seguiu as normas éticas vigentes no Brasil e recebeu a devida aprovação do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). A FMT-HVD ressalta que o estudo teve todo amparo das comissões responsáveis do Governo Federal e Estadual. As questões judicializadas estão a cargo do poder judiciário e todas informações foram prestadas.

Há 47 anos a FMT-HVD lida diariamente com doenças infectocontagiosas e tem seus estudos reconhecidos mundialmente. Somos referência internacional nas pesquisas e no campo acadêmico. Capacitamos e formamos pesquisadores de todo o mundo, sempre com gabarito técnico e moral de alta qualidade.”


A reportegem origem na Gazeta do Povo em 2020 traz o seguinte:

Estudo de Manaus foi antiético? Entenda os limites das pesquisas com seres humanos

Recentemente, pacientes terminais de Covid-19 de Manaus receberam altas dosagens de cloroquina: 6.000 mg em 5 dias, quando a bula estabelece que no máximo são 1.500 mg em três dias. A pesquisa foi conduzida por um pesquisador com 20 anos de experiência, vinculado a duas instituições de renome, a Fundação Oswaldo Cruz e a Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, o médico infectologista Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda.

O estudo foi parcialmente interrompido depois que 11 pacientes faleceram, e a equipe envolvida está sendo investigada pelo Ministério Público Federal e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), ligada ao Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde. O médico foi convocado a participar de uma audiência e a entregar uma série de dados e documentos a respeito do estudo. Nas redes sociais, ele foi acusado, sem provas, de usar altas doses de cloroquina em pacientes terminais, que não teriam chance de se recuperar, para desacreditar Jair Bolsonaro, entusiasta do medicamento para o tratamento de Covid-19.

Em entrevista à Gazeta do Povo, Lacerda explicou que o objetivo do estudo era confirmar a eficiência do uso de uma dosagem parecida com a utilizada pelos pesquisadores chineses (que foi bem menor que a usada pelo estudo brasileiro – os chineses usaram hidroxicloroquina e não cloroquina). “Nós tínhamos 81 pessoas, dessas 11 morreram na nossa primeira análise”, afirmou o pesquisador. “A interpretação das pessoas é que nós estamos dizendo que elas morreram porque usaram cloroquina, quando na verdade as pessoas que vão para a UTI com Covid elas estão gravíssimas, elas morrem mesmo”.

Enquanto não terminam as investigações, fica a pergunta: até onde podem ir as pesquisas com seres humanos?

Um pouco de história

Em 1796, o médico inglês Edward Jenner extraiu pus das feridas de uma ordenhadora de vacas chamada Sarah Nelmes, que estava infectada de varíola bovina, semelhante à varíola que atinge humanos. O material foi injetado em um garoto de oito anos de idade, chamado James Phipps. O objetivo era testar uma hipótese, a de que uma pequena dose da infecção seria capaz de imunizar a pessoa para ocorrências de varíola. Jenner desconfiava que as pessoas que tinham contato rotineiro com vacas eram imunes à doença.

O menino desenvolveu sintomas leves da varíola bovina. Para comprovar que ele estava imune, o médico aplicou uma nova injeção, desta vez do pus de uma pessoa contaminada com a varíola que atinge os humanos. James Phipps não ficou doente. Jenner replicou o teste com outras pessoas. Em 1798, anunciou sua descoberta. E assim, graças a testes realizados diretamente em seres humanos, surgiu a primeira vacina.

O método aplicado por Jenner era comum à época. Utilizar seres humanos como cobaias em nome da ciência era uma prática aceita, e não exclusiva dos campos de concentração nazistas. Entre 1932 e 1972, por exemplo, médicos do Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos realizaram pesquisas com negros portadores de sífilis de Tuskegee, no Alabama.

Ao longo dessas quatro décadas, 400 doentes foram monitorados, sem ser informados de que tinham a doença, nem receber tratamento adequado, mesmo quando a penicilina se provou eficaz. Ao longo do experimento, 25 das pessoas analisadas morreram em decorrência da sífilis, 40 esposas foram contaminadas e 19 crianças nasceram com a doença, tudo diante dos olhos dos pesquisadores.

Quando o caso veio à tona, denunciado por um dos médicos que atuaram na pesquisa, os Estados Unidos passaram a estabelecer uma série de normas para a pesquisa científica envolvendo seres humanos. Outros países também adotaram regras e códigos de conduta – o Brasil entre eles, começando pela antiga [e revogada] resolução nº 1, de 13 de junho de 1988, do Conselho Nacional de Saúde.

“Toda a organização do sistema de revisão ética de pesquisas envolvendo seres humanos visa o respeito à dignidade de todos os participantes da pesquisa. Não se admite mais, nos dias atuais, colocar pessoas em risco”, afirma Karla Amorim, professora de bioética do curso de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e ex-coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário da instituição. “Todo o sistema de ética, nacional e internacional, foi desenvolvido nas últimas décadas. Antes muitos dos estudos eram conduzidos sem o consentimento dos participantes e causavam dor desnecessária”.

Direito à transparência

O médico Jorge Venâncio, coordenador do Conep desde 2013, reitera que a pesquisa de Manaus está sendo investigada e explica que as pesquisas científicas envolvendo seres humanos são fiscalizadas por dois órgãos diferentes. “O Conep é focado nos cuidados com as pessoas pesquisadas. Sabemos que muitos pacientes estão perto do desespero quando são convidados a participar de um estudo. São pacientes de câncer, por exemplo. Então o conselho monitora os estudos para garantir que os direitos dessas pessoas sejam respeitados”.

Esse sistema de monitoramento está ligado a mais de 850 comitês de ética instalados em universidades, hospitais e secretarias de saúde. “Praticamente toda instituição que faz pesquisa tem seus próprios comitês de ética”, diz o médico. Em geral, estudos com cosméticos, por exemplo, são fiscalizados por esses conselhos locais.

“Cerca de 2% das pesquisas sobem para o conselho nacional, principalmente estudos com medicamentos”, afirma Jorge Venâncio. “O restante é monitorado pelos comitês regionais, que estão mais próximos dos centros de pesquisa”. Por sua vez, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) zela pelos aspectos técnicos da pesquisa. “São trabalhos complementares. As duas instituições mantêm um diálogo muito produtivo”, diz o coordenador do Conep.

A resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, é que estabelece as regras para a realização de pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil. Exige, por exemplo, “respeito ao participante da pesquisa em sua dignidade e autonomia, reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua vontade de contribuir e permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de manifestação expressa, livre e esclarecida”.

Como afirma a professora Karla Amorim, “os participantes das pesquisas precisam compreender o estudo de que vão participar. É o que chamamos de consentimento livre e esclarecido. O pesquisador precisa explicar o estudo com linguagem clara, ou então o consentimento não será livre e esclarecido. Será apenas um papel assinado para fornecer salvaguardas jurídicas”.

O Brasil não permite que os participantes de pesquisa sejam remunerados – uma prática comum na América do Norte e no Reino Unido, a ponto de recentemente um laboratório inglês, o HVivo, ter oferecido o equivalente a R$ 20 mil para cada voluntário disposto a ser infectado pelo Covid-19, a fim de colaborar para o desenvolvimento de uma vacina.

Mas os centros de pesquisas brasileiros são obrigados a cobrir todos os custos dos participantes, incluindo alimentação e transporte, além de prestar todo o atendimento necessário em caso de surgirem efeitos adversos. “No caso do desenvolvimento de medicamentos, o participante tem direito a receber o remédio até o fim da vida, enquanto precisar dele”, explica Venâncio. Além disso, todo participante tem o direito a receber o melhor tratamento disponível para determinada doença – essa determinação é aplicada internacionalmente desde o caso de Tuskegee. “Para avaliar os efeitos de um novo medicamento, os participantes podem ser divididos em dois grupos, sendo que um deles deve obrigatoriamente receber o medicamento mais eficaz disponível no mercado”, informa o coordenador do Conep. “Não é aceitável utilizar placebos e recusar, assim, tratar a doença de que o participante é portador”.


O senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) em entrevista coletiva nesta segunda-feira

E como o caso está agora? Segue solicitação de investigação feita pelo Senador Heinze:

Heinze pede à PF que investigue estudo sobre uso elevado de cloroquina em Manaus

Em entrevista coletiva nesta segunda-feira (17), o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), que integra a CPI da Pandemia, disse que apresentou ao diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Gustavo Maiurino, um pedido de investigação sobre o uso elevado da hidroxicloroquina, em Manaus, no início da pandemia, em março de 2020.

Heinze disse que o sucesso do medicamento no combate à covid-19 estaria na dosagem, reforçando o que tem afirmado nas reuniões da CPI, e que uma alta dose de cloroquina teria acarretado a morte de 22 pacientes na capital amazonense. O senador afirmou também que foi realizada uma pesquisa na capital amazonense com relação à utilização da cloroquina e hidroxicloroquina e os resultados foram publicados em uma revista internacional, a JAMA Network, da American Medical Association (AMA).

– “A gente quer saber a partir de quem e de onde se originou a indicação de que a pesquisa deveria ser realizada no Brasil, quem indicou e qual a razão da pesquisa ser feita em Manaus, considerando-se que o agravamento da pandemia lá se deu nesse ano e não no ano passado”, disse Heinze.

Além disso, ele pediu esclarecimentos sobre o estudo ser limitado a pacientes hospitalizados e gravemente doentes, sendo que a expectativa era de que o medicamento servir no “tratamento precoce”, como tem defendido nas reuniões da CPI da Pandemia. Ele também questiona os critérios para escolha dos pesquisadores e quer respostas sobre as supostas conexões entre pesquisadores e grandes laboratórios e se os benefícios econômicos estão relacionados à produção de vacinas, ou de políticos.

– Quais os possíveis contatos e liames entre eventuais pesquisadores e os grandes laboratórios, com interesses econômicos ligados à produção de vacinas, ou de políticos, com propósitos de desestabilização de um governo?” indagou o senador ao concluir a entrevista.


Publicado em 07/11/2021 11h00

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