Descobertas no Brasil e Argentina demonstram que as ‘serpentes bíblicas’, com patas, existiram de fato

Esta restauração mostra a cobra Najash rionegrina movendo-se através das dunas do deserto de Kokorkom, que se estendiam por Río Negro (no norte da Patagônia), Argentina, durante o final do Cretáceo (100 milhões de anos atrás).

Em ocasiões muito raras, é descoberto um fóssil excepcional que fornece uma visão extraordinária da evolução de um grupo de organismos.

Desta vez, é o crânio maravilhosamente preservado de uma cobra antiga com membros traseiros, Najash rionegrina. Nosso estudo desse fóssil foi publicado na revista Science Advances.

Este e outros novos fósseis ajudam a responder a perguntas de longa data sobre as origens das cobras, como como eles perderam seus membros e desenvolveram seus crânios altamente especializados.

História fóssil

Najash rionegrina recebeu o nome da cobra bíblica de pernas Nahash (hebraico para cobra) e da província de Río Negro, na Argentina, onde os fósseis foram descobertos. Os fósseis de Najash têm cerca de 95 milhões de anos e foram descritos pela primeira vez na natureza a partir de um crânio fragmentado e esqueleto parcial do corpo que preservava membros traseiros robustos.

Essa cobra fóssil de membros traseiros despertou grande interesse da mídia, pois seguiu relatos anteriores de cobras marinhas fósseis com membros traseiros. O que tornou Najash único foi o fato de ser uma cobra terrestre que vive no deserto, não uma cobra aquática que vive no oceano. Além disso, os fósseis não foram compactados pelo peso dos sedimentos sobrepostos e, portanto, foram preservados em três dimensões, diferentemente das serpentes marinhas fósseis.

Infelizmente, essa primeira descrição de Najash se baseou em um crânio muito fragmentário. Os estudiosos da evolução das cobras foram deixados a adivinhar como seria a cabeça desses animais antigos.

Sabemos pela anatomia compartilhada que as cobras evoluíram dos lagartos. Também sabemos que os crânios de cobras foram fundamentais para suas adaptações alimentares bem-sucedidas e altamente especializadas. Os novos crânios fósseis de Najash seriam altamente informativos sobre o padrão da evolução do crânio de cobra.

A nova descoberta na Argentina

Aqui, os cientistas no processo de remoção de sedimentos para extrair fósseis contidos nas rochas de La Buitrera. (Crédito da imagem: Sebastián Apesteguía)

Foi um dia quente em fevereiro de 2013, quando Fernando Garberoglio, então estudante de paleontologia da Universidade de Buenos Aires, fez sua primeira viagem de campo à Área Paleontológica de La Buitrera, no norte da Patagônia, Argentina. Com ele estavam dois paleontólogos: Sebastián Apesteguía, da Universidade Maimónides, e Guillermo Rougier, da Universidade de Louisville.

Procurar vertebrados fósseis é um ato de paciente e minuciosa descoberta. Exige que você esteja próximo ao chão, examinando a areia, seixos, pedras e sedimentos em busca de sinais de osso. Você deve pegar cada peça, inspecioná-la de perto, largar e repetir, hora após hora. Em La Buitrera, você é queimado pelo sol quente, atingido pela chuva e congelado pelos ventos frios andinos.

Mas tudo vale a pena. Particularmente quando, como aconteceu com Garberoglio, ele finalmente pegou uma pedrinha, com apenas alguns centímetros de comprimento, para encontrar um rosto pequeno e antigo e ossudo olhando de volta para ele.

“Encontrei um crânio de cobra!”

Rougier pediu para inspecionar o fóssil e descobriu que, para sua surpresa, Garberoglio estava certo – lá estava um crânio de cobra preservado em 3D quase completo, com 95 milhões de anos de idade.

Faz 13 anos desde que Najash foi nomeado e sete anos desde a descoberta de Fernando. Hoje, a longa caçada produziu a recompensa de um tesouro de novos crânios e esqueletos de Najash, provenientes de locais ricos em fósseis em La Buitrera.

Evolução do crânio

O novo crânio fóssil de Najash, da Argentina. (Crédito da imagem: Fernando Garberoglio)

Uma hipótese de longa data é que as cobras evoluíram de um ancestral cego e escavador de lagarto. Um grupo de cobras pequenas, parecidas com vermes e de boca pequena, conhecidas como escolecofídeos, há muito tempo é considerado as cobras vivas mais primitivas.

O novo material fóssil de Najash mostra que os crânios dessa linhagem de cobras antigas não eram nada parecidos com os das cobras escolecofidianas. Em vez disso, Najash e seu tipo tinham bocas grandes com dentes afiados e algumas das articulações móveis do crânio, típicas das cobras mais modernas. No entanto, eles ainda mantinham algumas características ósseas do crânio de lagartos mais típicos.

Em termos evolutivos, Najash nos diz que as cobras estavam evoluindo em direção à mobilidade do crânio necessária para ingerir itens de presas bastante grandes, uma característica marcante de muitas cobras modernas.

Previsão científica

Informações críticas também são preservadas nos detalhes osso a osso preservados nesses novos fósseis de Najash. Por exemplo, por muito tempo, pensou-se que o osso em forma de bastão localizado atrás do olho das cobras modernas – chamado jugal – fosse o equivalente ao osso pós-orbital de seus ancestrais lagartos. Seguiu-se a idéia de que o jugal estava ausente em todas as cobras, fósseis e modernas.

O novo crânio de Najash demonstra conclusivamente que isso não está correto. O osso abaixo da órbita de Najash tem a mesma forma, posição e conexões que o jugal em forma de L dos lagartos mais típicos. Isso demonstra que a barra inferior do jugal foi perdida com a evolução da serpente, deixando para trás um jugal em forma de bastão nas cobras modernas. É o osso pós-orbital que se perdeu, não o jugal.

Esses novos espécimes de Najash são um excelente exemplo do poder preditivo da ciência. Hipóteses como a presença de um jugal em cobras podem ser apoiadas pela descoberta de novos dados que atendam a essas previsões. O que acontece como resultado é que uma hipótese antiga é falsificada e uma nova é verificada.

Em resumo, o crânio de Najash nos diz que as cobras ancestrais eram muito parecidas com alguns de seus parentes próximos, como lagartos de corpo grande e cabeça grande, como os dragões de Komodo. Isso está muito longe da idéia de que cobras poderiam ter evoluído de antepassados ??minúsculos, cegos, parecidos com vermes e bocas pequenas; nenhum fóssil conhecido de cobras antigas se assemelha a todos os escolecofidianos supostamente primitivos de boca pequena.

A descoberta anterior, no Brasil:

O ancestral da serpente era rastejante e assustador. Dave Martill, Universidade de Portsmouth

Como a cobra conseguiu deslizar? Desde que a astuta serpente de Gênesis tentou Eva a comer o fruto proibido, somos fascinados por cobras. E, apesar do nosso interesse neste animal, temos um entendimento fraco de como ele realmente evoluiu. Mas os cientistas lançaram agora um novo estudo sobre o fóssil de uma cobra que parece ter vivido entre 100 e 146 milhões de anos atrás. E além do mais, tinha pernas.

As razões pelas quais sabemos tão pouco sobre a evolução das serpentes são porque existem poucos fósseis. Dados moleculares sugerem que as cobras apareceram dentro da árvore genealógica dos squamates – incluindo lagartos e anfíbios sem membros – em algum momento do Jurássico (há mais de 150 milhões de anos). No entanto, as cobras fósseis indiscutíveis mais antigas conhecidas são muito mais jovens, do Cretáceo (cerca de 110 milhões de anos atrás).

O lagarto de vidro esbelto, parecido com um verme. Dawson / wikimedia, CC BY-SA

Embora se pense que as cobras sejam um único grupo evolutivo, compartilhando um ancestral comum, a evolução da ausência de limiar é, na verdade, uma característica bastante comum da evolução dos escamas. A perda de membros, correlacionada com o alongamento corporal, ocorreu durante a evolução de mais de 20 membros desse grupo de vertebrados. Um exemplo são os lagartos de patas chamadas Pygopodidae, que se parecem muito com cobras.

Talvez haja uma razão biomecânica para esse tipo de evolução? Se o corpo evolui para ficar cada vez mais longo, pode ser fisicamente mais difícil usar efetivamente pernas e braços. No caso de cobras, sabe-se que alguns fósseis documentam uma parte dessa transição, mostrando que, no início de sua evolução, algumas cobras tinham membros posteriores. Isso também levou a sugestões de que esses escamas evoluíram de animais nos oceanos.

Um corpo para cavar

Mas o novo fóssil, Tetrapodophis, do Brasil, tem quatro membros intactos e um corpo super alongado – semelhante às cobras modernas. Curiosamente, também possui muito mais vértebras do que o normal para qualquer cobra conhecida até agora, viva ou fóssil.

Amostra bem preservada. Dave Martill, Universidade de Portsmouth.

Esse fóssil sugere que essa estrutura corporal funcionaria mais para escavar do que para nadar. Essa é uma das razões pelas quais é tão importante – implica que as cobras evoluíram na terra e não no mar.

Além de ser crítico para uma nova compreensão da evolução inicial das cobras, esse fóssil também é interessante em um contexto paleontológico mais amplo.

Como argumentei anteriormente, a coleta de fósseis é um campo em que qualquer pessoa pode e deve ser incentivada a participar. Fósseis alojados em todos os tipos de coleções devem formar a base do nosso trabalho científico.

Impressão artística da cobra quadrúpede. Julius T Csotonyi

Muitas pessoas, incluindo algumas sociedades profissionais, argumentam que apenas fósseis curados e depositados em instituições públicas reconhecidas (como museus e universidades) devem ser trabalhados e publicados em revistas científicas.

De acordo com este artigo, o espécime fóssil de cobra faz parte de uma coleção particular, onde foi alojado por muitas décadas antes de sua importância ser percebida. O proprietário agora a coloca sob os cuidados de longo prazo do Museu Bürgermeister-Müller, na Alemanha. No entanto, muitos de nós que trabalhamos no campo esperam que ele seja devolvido ao Brasil em um futuro próximo.


Condensado de 2 artigos de “The Conversation” sob a licença CC – Creative Commons.


Publicado em 07/12/2019

Artigos originais:


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