Extinção das línguas indígenas leva à perda de conhecimento exclusivo sobre as plantas medicinais

Ritual do povo Yawalapiti, cuja língua é originária do Alto Xingu, falado atualmente por apenas três pessoas. Jean Marconi / CC BY-NC-SA 2.0.

Um estudo da Universidade de Zurique, na Suíça, mostra que uma grande proporção do conhecimento existente sobre plantas medicinais está ligada a línguas indígenas ameaçadas. Em estudo regional na Amazônia, Nova Guiné e América do Norte, pesquisadores concluíram que 75% dos usos das plantas medicinais são conhecidos em apenas um idioma.

O estudo avaliou 645 espécies de plantas no noroeste da Amazônia e seus usos medicinais, de acordo com a tradição oral de 37 línguas. Constatou que 91% desse conhecimento existe em um único idioma, e que a extinção desse idioma implica também na perda do conhecimento medicinal.

No Brasil, as escolas indígenas têm um papel importante na preservação das línguas ao lado de projetos de catalogação e revitalização como os do povo Karitiana em Rondônia e dos Pataxó na Bahia e Minas Gerais.

“Cada vez que uma língua desaparece, uma voz que fala também desaparece, uma forma de dar sentido à realidade desaparece, uma forma de interagir com a natureza desaparece, uma forma de descrever e nomear animais e plantas desaparece”, diz Jordi Bascompte, pesquisador do Departamento de Biologia Evolutiva e Estudos Ambientais na Universidade de Zurique.

O projeto Ethnologue concluiu que 42% das mais de 7.000 línguas existentes no mundo estão ameaçadas de extinção. Das 1.000 línguas indígenas faladas no Brasil antes da chegada dos portugueses em 1500, apenas cerca de 160 ainda estão vivas, de acordo com a pesquisa de línguas sem fins lucrativos SIL International.

Em estudo recente, Bascompte e o especialista em biodiversidade Rodrigo Cámara-Leret alertam que a extinção das línguas indígenas equivale a uma perda do conhecimento tradicional sobre as plantas medicinais, o que pode reduzir as chances de descoberta de futuros medicamentos.

Muitos dos medicamentos de mercado de massa de hoje são derivados de plantas medicinais. Eles variam do ácido acetilsalicílico – comumente conhecido como aspirina, cujo ingrediente ativo é extraído do salgueiro branco (Salix alba L.) – à morfina, que é extraída da papoila (Papaver somniferum).

Como os grupos indígenas tradicionalmente dependem da palavra falada para a transferência de conhecimento entre gerações, o desaparecimento dessas línguas levará consigo um universo de informações.

Os pontos nos mapas indicam a distribuição das línguas que citam plantas medicinais. As barras vermelhas mostram a porcentagem do conhecimento medicinal restrito a apenas um idioma na América do Norte (A), no noroeste da Amazônia (B) e na Nova Guiné (C).

Dobre o desafio

Os cientistas do estudo analisaram 3.597 espécies vegetais com 12.495 usos medicinais e vincularam esses dados a 236 línguas indígenas de três regiões biológica e culturalmente diversas – noroeste da Amazônia, Nova Guiné e América do Norte. A partir disso, concluíram que nessas regiões, 75% dos usos medicinais das plantas medicinais são conhecidos em apenas um idioma.

“Descobrimos que as línguas com conhecimento único são as que correm maior risco de extinção”, diz Bascompte. “Existe uma espécie de duplo problema em termos de como o conhecimento irá desaparecer”.

As Américas se destacaram no estudo como um hotspot para o conhecimento indígena, no qual a maior parte do conhecimento medicinal está ligada a línguas ameaçadas de extinção, e o noroeste da Amazônia, em particular, provou ser um excelente exemplo do duplo problema mencionado por Bascompte. O estudo avaliou 645 espécies de plantas e seus usos medicinais de acordo com a tradição oral em 37 idiomas e constatou que 91% desse conhecimento existe em um único idioma. Portanto, se uma língua se extinguir, como pode acontecer com muitos na Amazônia nos próximos anos, o conhecimento medicinal nela também morrerá.

As plantas amazônicas avaliadas no estudo foram retiradas do livro A Floresta Curativa: Plantas Medicinais e Tóxicas do Noroeste da Amazônia, escrito em 1990 por Richard E. Schultes, o autor norte-americano considerado o pai da etnobotânica.

Homens do povo Pataxó, cuja língua foi resgatada nos últimos anos. Imagem de Valter Campanato / ABr.

A perda cultural é maior do que a perda de biodiversidade

Ao analisar a vulnerabilidade de tais espécies medicinais, o estudo descobriu que o status de perigo de 64% e 69% das plantas associadas a línguas ameaçadas de extinção na América do Norte e no noroeste da Amazônia, respectivamente, não foram avaliados pela União Internacional para a Conservação da Natureza ( IUCN). Devido a essa falta de avaliação, menos de 4% e 1% das espécies, respectivamente, estão atualmente classificadas como ameaçadas.

Os pesquisadores complementaram os dados limitados dos relatórios de status de conservação da IUCN com mais previsões de um estudo de aprendizado de máquina separado e concluíram que “a maioria das espécies de plantas medicinais em nossa amostra não está ameaçada”; no entanto, eles ainda observam que “as avaliações de conservação da IUCN ainda são urgentemente necessárias para essas espécies de plantas.”

Embora apoie este apelo à ação, o estudo destaca que a perda de línguas provavelmente terá um impacto maior na extinção do conhecimento medicinal do que a perda da biodiversidade. No que diz respeito à manutenção dos serviços ecossistêmicos, o patrimônio cultural é tão importante quanto a sobrevivência das plantas, como já foi comprovado em estudos científicos. Mas os resultados de outro estudo conduzido pelos mesmos cientistas em 2019 mostraram que as conexões culturais e biológicas são inseparáveis – um conceito ainda mais solidificado por seu novo artigo.

“Não podemos ignorar essa rede agora e pensar apenas nas plantas ou apenas na cultura”, diz Bascompte, apontando para a tendência de minimizar a diversidade. “Nós, humanos, somos muito bons em homogeneizar a cultura e a natureza, de modo que a natureza parece ser mais ou menos a mesma em todos os lugares.”

No início de setembro, durante o terceiro ciclo do Projeto Amazoniar, organizado pelo Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (IPAM), o artista e educador Denilson Baniwa falou sobre essa homogeneização a partir de uma perspectiva indígena: “Se eu falo bem assim é porque, de certa forma, meu povo e outros povos no Brasil foram forçados a entender as tecnologias, conhecimentos e informações de outros povos, em sua maioria não indígenas, para poder sobreviver”.

Educação sobre a extinção

“Quando falamos em preservação no Brasil, as escolas indígenas têm um papel importante”, diz Luciana Sanchez Mendes, lingüista especializada em línguas indígenas. “É nas escolas indígenas localizadas nas aldeias que as crianças vão aprender – tanto em português como na própria língua da comunidade.”

Uma iniciativa para preservar a cultura do povo Karitiana, o Léxico Pedagógico de Plantas e Animais Karitiana, foi criado durante um estudo para ser utilizado como material didático na educação bilíngue da escola da Reserva Indígena Karitiana, em Rondônia. O projeto começou com uma lista e descrição de plantas e animais encontrados na reserva na língua Karitiana. A produção do documento envolveu anciãos, lideranças, catadores e professores que registraram conhecimentos tradicionais sobre o bioma amazônico.

Enquanto isso, na Bahia e no norte de Minas Gerais, um grupo de pesquisadores estudou e revitalizou a língua Pataxó, considerada extinta há anos. Junto com jovens e professores Pataxó, eles estudaram documentos e realizaram trabalhos de campo, resultando no Projeto de Pesquisa e Documentação de Cultura e Linguagem Pataxó. A língua recuperada, que agora é ensinada em várias aldeias, chama-se Patxohã.

“Os lingüistas consideram um idioma em perigo quando as pessoas param de falar com os filhos em sua língua nativa”, diz Mendes, que possui pós-doutorado pela Universidade Federal de Roraima, no Brasil. No Brasil, a desvalorização das línguas indígenas tem favorecido o português e o espanhol – dominantes desde os tempos coloniais – à medida que os pais indígenas abrem mão de suas línguas nativas no intuito de equipar seus filhos para o sucesso social. Inúmeras outras pressões sobre os povos indígenas, juntamente com as recentes mortes de líderes da Covid-19, também causaram perdas culturais.

Para ajudar os povos indígenas em todo o mundo a preservar, revitalizar e promover suas línguas, a UNESCO lançou sua Década de Ação para as Línguas Indígenas de 2022 a 2032.

“Existe vida fora do inglês”, diz Bascompte. “Essas são as línguas que tendemos a esquecer – as línguas de pessoas pobres ou desconhecidas que não desempenham papéis nacionais porque não participam de painéis, ou das Nações Unidas ou de lugares assim. Acho que temos que fazer um esforço para usar essa declaração das Nações Unidas para aumentar a conscientização sobre a diversidade cultural e sobre a sorte que temos como espécie por fazer parte dessa diversidade incrível.”


Publicado em 22/09/2021 10h57

Artigo original: