Cientistas descobrem como o vírus do sarampo pode causar um distúrbio neurológico fatal

Pesquisadores japoneses descobriram o mecanismo por trás do desenvolvimento da panencefalite esclerosante subaguda (PES), uma doença neurológica fatal que pode ocorrer anos após uma infecção por sarampo.

Vírus do sarampo “coopera” consigo mesmo para causar encefalite fatal

Cientistas descobrem um novo mecanismo de como o vírus do sarampo pode causar uma doença neurológica rara, mas fatal, a panencefalite esclerosante subaguda.

Pesquisadores no Japão descobriram o mecanismo de como o vírus do sarampo pode causar panencefalite esclerosante subaguda, ou SSPE, um distúrbio neurológico raro, mas fatal, que pode ocorrer vários anos após uma infecção por sarampo.

Embora a forma normal do vírus do sarampo não possa infectar o sistema nervoso, a equipe descobriu que os vírus que persistem no corpo podem desenvolver mutações em uma proteína chave que controla como eles infectam as células. As proteínas mutantes podem interagir com sua forma normal, tornando-a capaz de infectar o cérebro. Suas descobertas serão relatadas hoje (27 de janeiro) na revista Science Advances.

Se você tem uma certa idade, pode ter tido sarampo quando criança. Muitos nascidos após a década de 1970 nunca a contraíram graças às vacinas. A condição é causada pelo vírus de mesmo nome, que é um dos patógenos mais contagiosos até hoje. A Organização Mundial da Saúde estima que quase nove milhões de pessoas em todo o mundo foram infectadas com sarampo em 2021, com o número de mortes chegando a 128.000.

A mutação na proteína F é a chave para o vírus do sarampo se fundir e infectar os neurônios. Existem duas estratégias primárias para tal infecção. Inicialmente, a atividade de fusão de uma proteína F mutante é suprimida devido à interferência das proteínas F normais (caixa preta). Essa interferência é superada pelo acúmulo de mutações e aumento da fusogenecidade (caixa laranja). Em outro caso, uma mutação diferente na proteína F age de forma oposta e reduz a atividade de fusão, mas, inversamente, coopera com as proteínas F normais que aumentam a atividade de fusão (caixa azul). Assim, mesmo proteínas F mutantes que parecem incapazes de infectar neurônios ainda podem infectar o cérebro. Crédito: Universidade de Kyushu/Hidetaka Harada/Yuta Shirogane

“Apesar de sua disponibilidade, a recente pandemia de COVID-19 atrasou as vacinações, especialmente no Sul Global”, explica Yuta Shirogane, professor assistente da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Kyushu. “SSPE é uma condição rara, mas fatal, causada pelo vírus do sarampo. No entanto, o vírus normal do sarampo não tem a capacidade de se propagar no cérebro e, portanto, não está claro como causa a encefalite”.

Um vírus infecta as células através de uma série de proteínas que se projetam de sua superfície. Normalmente, uma proteína primeiro facilita a fixação do vírus à superfície da célula, depois outra proteína de superfície causa uma reação que permite a entrada do vírus na célula, levando a uma infecção. Portanto, o que um vírus pode ou não infectar pode depender muito do tipo de célula.

“Normalmente, o vírus do sarampo infecta apenas as células imunes e epiteliais, causando febre e erupções cutâneas”, continua Shirogane. “Portanto, em pacientes com SSPE, o vírus do sarampo deve ter permanecido em seu corpo e mutado, então ganhou a capacidade de infectar células nervosas. Os vírus de RNA, como o do sarampo, sofrem mutações e evoluem em taxas muito altas, mas o mecanismo de como ele evoluiu para infectar os neurônios é um mistério”.

O vírus do sarampo é um vírus envelopado com uma bicamada lipídica. A bicamada contém a proteína hemaglutinina (H) de ligação ao receptor e a proteína de fusão (F). Para que a infecção aconteça, a proteína H primeiro se liga a um receptor na célula-alvo e, em seguida, a proteína F muda sua conformação para fundir as membranas. Crédito: Universidade de Kyushu/Hidetaka Harada/Yuta Shirogane

O fator chave para permitir que o vírus do sarampo infecte uma célula é uma proteína chamada proteína de fusão, ou proteína F. Nos estudos anteriores da equipe, eles mostraram que certas mutações na proteína F a colocam em um estado “hiperfusongênico”, permitindo que ela se funda nas sinapses neurais e infecte o cérebro.

Em seu último estudo, a equipe analisou o genoma do vírus do sarampo de pacientes com SSPE e descobriu que várias mutações se acumularam em sua proteína F. Curiosamente, certas mutações aumentariam a atividade da infecção, enquanto outras na verdade a diminuiriam.

“Foi surpreendente ver isso, mas encontramos uma explicação. Quando o vírus infecta um neurônio, ele o infecta por meio da ‘transmissão em bloco’, onde várias cópias do genoma viral entram na célula”, continua Shirogane. “Nesse caso, o genoma que codifica a proteína F mutante é transmitido simultaneamente com o genoma da proteína F normal, e é provável que ambas as proteínas coexistam na célula infectada”.

Com base nessa hipótese, a equipe analisou a atividade de fusão das proteínas F mutantes quando as proteínas F normais estavam presentes. Seus resultados mostraram que a atividade de fusão de uma proteína F mutante é suprimida devido à interferência das proteínas F normais, mas essa interferência é superada pelo acúmulo de mutações na proteína F.

Quando a proteína F induz a fusão da membrana em uma sinapse neuronal, vários genomas do vírus do sarampo são transmitidos simultaneamente para o próximo neurônio. Esse fenômeno é conhecido como “transmissão em bloco”. Nessa condição, os genomas normais e mutantes são transmitidos simultaneamente, resultando em proteínas F normais e mutantes coexpressas em uma célula infectada. Crédito: Universidade de Kyushu/Hidetaka Harada/Yuta Shirogane

Em outro caso, a equipe descobriu que um conjunto diferente de mutações na proteína F resulta em um resultado completamente oposto: uma redução na atividade de fusão. No entanto, para sua surpresa, essa mutação pode realmente cooperar com as proteínas F normais para aumentar a atividade de fusão. Assim, mesmo proteínas F mutantes que parecem incapazes de infectar neurônios ainda podem infectar o cérebro.

“É quase contrário ao modelo de ‘sobrevivência do mais apto’ para propagação viral. Na verdade, esse fenômeno em que as mutações interferem e/ou cooperam entre si é chamado de ‘Sociovirologia’. Ainda é um conceito novo, mas foi observado que os vírus interagem entre si como um grupo. É uma perspectiva empolgante”, explica Shirogane.

A equipe espera que seus resultados ajudem a desenvolver terapias para SSPE, bem como a elucidar os mecanismos evolutivos comuns a vírus que possuem mecanismos de infecção semelhantes ao sarampo, como novos coronavírus e herpesvírus.

“Existem muitos mistérios nos mecanismos pelos quais os vírus causam doenças. Desde que eu era estudante de medicina, eu estava interessado em saber como o vírus do sarampo causava SSPE. Estou feliz por termos conseguido elucidar o mecanismo desta doença”, conclui Shirogane.


Publicado em 03/02/2023 00h29

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